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Resumo

Apesar de ser um instrumento de colonização e imperialismo mundial, a importância e influência da Doutrina da Descoberta tem sido negligenciada na literatura e estudos brasileiros. Este artigo examina o impacto da Doutrina no povo Indígena brasileiro e no meio ambiente, destacando a necessidade de reconhecer e compreender os efeitos e manifestações da Doutrina dos Descobrimentos no Brasil. Explora também as interseções da Doutrina com os direitos e a soberania indígena. Argumenta que a compreensão da Doutrina é essencial para avançar de forma respeitosa e sustentável com os povos indígenas e o meio ambiente.

Palavras-chave:

Doutrina da Descoberta, Literatura Brasileira, Povos Indígenas, Floresta Amazônica, Yanomami, Meio Ambiente, Colonização, Imperialismo, Floresta Tropical, Direitos Indígenas, Soberania, Tratado de Tordesilhas

A Doutrina da Descoberta tem sido usada desde longa data conforme a colonização de povos e o imperialismo se espalham pelo planeta. Todavia, mas sua importância e influência têm sido largamente negligenciadas nos estudos brasileiros.

As nações européias utilizaram esta Lei Internacional durante a Era da Exploração para justificar a colonização de terras fora da Europa. Baseada na idéia de que as nações cristãs tinham o direito de reivindicar terras não habitadas por cristãos, a Doutrina justifica a expulsão dos povos indígenas de suas terras e o confisco e apropriação de recursos nelas existentes. (Miller, 2011)

Informações sobre a Doutrina em livros de História do Brasil, publicações pedagógicas e acadêmicas, artigos e pesquisas são quase inexistentes, e o caso é o mesmo para informações disponíveis em português.

Estudos de John Hemmings, antropólogo, historiador e um dos especialistas mundiais em índios brasileiros e no ambiente amazônico, estão disponíveis em português e acessíveis aos brasileiros. Hemmings escreveu extensivamente sobre a dominação e opressão dos povos indígenas brasileiros, desde seus primeiros encontros com os europeus. Exceto por curtas menções ao Tratado de Tordesilhas, Hemmings não se faz referência à influência da Doutrina na história do Brasil.

E como se a Doutrina da Descoberta nunca houvesse existido abaixo da linha do Equador, e o Tratado de Tordesilhas, uma de suas principais manifestações, se tratasse apenas da mera demarcação de terras sem maiores consequências.

Alguns dos poucos trabalhos que fazem referência às manifestações da Doutrina da Descoberta no Brasil são publicações de Robert Miller. Seu trabalho com Micheline D’Angelis, “Brazil, Indigenous Peoples, and the International Law of Discovery” (Miller & D’Angelis, 2011), está disponível em inglês mas não em Português.

Neste artigo, estão inclusos casos recentes e concretos que refletem o colonialismo epistemológico oriundo da Doutrina e que se manifesta na vida brasileira como uma forma de imposição de um conjunto particular de valores, crenças e sistemas de conhecimento à uma população colonizada.

Um conceito eurocêntrico e baseado na crença de supremacista do europeu branco, a Doutrina é frequentemente utilizada para justificar a colonização de terras indígenas e a exploração dos povos indígenas. Em um país colonizado pelos portugueses, o Brasil, as discussões sobre a Doutrina continuam inexistentes. Este silêncio tem permitido que as manifestações e efeitos da Doutrina permaneçam presentes, inquestionáveis, intocadas e ignoradas.

Este artigo explora essa invisibilidade e visa identificar conexões entre os princípios da Doutrina do Descobrimento e a violência contínua contra os povos indígenas no Brasil, resultando na devastação da Floresta Amazônica e consequentes efeitos ambientais catastróficos.

Manifestações e efeitos da Doutrina devem ser incluídos no debate sobre os fatos que cercam os povos indígenas. Caso contrário, a desinformação e a rejeição de fatores cruciais contribuirão para a continuidade da violência epistêmica resultante de abordagens e interpretações reducionistas da vitimizacao contínua dos povos indígenas no Brasil.

Um caso que reflete tal reducionismo seria o de buscar meios de estabelecer conexões inexistentes entre a Comissão de Verdade e Reconciliação Canadense (2008 Canadian Truth and Reconciliation Commission) e a Comissão Nacional da Verdade (CNV) realizada no Brasil em 2012. Tal tentativa de estabelecer conexões entre ad duas situações, buscaria criar a falsa ideia de que a Comissão Brasileira tenha representado uma tentativa de lidar com a violência contra os povos indígenas do Brasil. Não é este o caso. Esta é uma das situações em que a desinformação resulta de uma falta de tratamento da realidade que tem devastado as populações indígenas no Brasil por décadas, se não séculos.

Neste caso, as comparações entre a Comissão de Verdade e Reconciliação no Canadá (2008 Canadian Truth and Reconciliation Commission) e a Comissão Nacional da Verdade no Brasil reduzem os fatores históricos centenários presentes na violência contínua contra os povos indígenas no Brasil, a um evento ligado a ditadura naquele país, escondendo a verdade com restrições de tempo e espaço, reforçando a violência epistêmica (Fricker, 2011) que os vitimiza. Além do fato de que a Comissão Brasileira (CNV) não haver sido criada para abordar a violência contra os povos indígenas no Brasil, é essencial salientar que uma “Comissão da Verdade” está conceitualmente focada no passado e não nos eventos em curso (Hayner, 2010). No caso dos povos indígenas brasileiros, a violência nunca é um fato contínuo que não pode ser escondida como evento do passado.

O reconhecimento das diferentes experiências e do contexto único dos povos indígenas em cada países é crucial.

As comparações reducionistas refletem a continuidade do colonialismo epistemológico, que cria conceitos erroneos enquanro silencia e esconde as conexões da Doutrina da Descoberta com os acontecimentos atuais.

Este artigo não é sobre os eventos atuais na floresta Amazônica, e não visa, como objetivo principal, denunciar as atuais condições precárias do povo Yanomami, que sofre com a invasão e exploração desenfreada de suas terras. A imprensa mundial neste momento, em 2023, felizmente tem se encarregado em fazê-lo.

Entretanto, este artigo faz menção a tais eventos como uma forma de lançar luz sobre as manifestações dos princípios desta Lei Internacional que ainda hoje está presente nas justificativas repetidamente utilizadas para a expulsão dos povos indígenas de suas terras, sua subjugação e tentativas de eliminá-los.

Os princípios da Doutrina estão na raiz da tragédia que se desenrola hoje na Amazônia, enquanto o povo Yanomami luta para sobreviver enquanto enfrenta o que é visto por muitas organizações como genocídio (Philips, 2023) (Reuters, 2023) (Sassin, 2023) (Miller, 2015).

Reconhecida como o reservatório biológico mais rico do mundo, contendo vários milhões de espécies de todas as formas de vida, muitas ainda não registradas pela ciência, a Floresta Amazônica compreende 40 por cento da área total do Brasil.

Em 20 de janeiro de 2023, quinhentos e vinte e três anos após a chegada dos portugueses à terra ao leste do Tratado de Tordesilhas, hoje o Brasil, o mundo testemunha as condições miseráveis em que o povo Yanomami tenta sobreviver na Floresta Amazônica.

O desdobramento da tragédia no território Yanomami mostra adultos e crianças em grave desnutrição, famintos devido ao fato da pesca, a agricultura e a caça haverem se tornado impossíveis depois que a invasão de suas terras por garimpeiros e empresas de garimpo resultou na contaminação dos rios com mercúrio utilizado para extração mineral. O povo Yanomami, neste momento, perece de todos os tipos de doenças trazidas pela mineração ilegal. Violência física e sexual, assassinato de crianças Yanomami por invasores, avanço do tráfico de drogas e a violência contra aqueles que desafiam o status quo são fatores continuamente presentes em suas terras.

Máquinas poderosas e armas automáticas são usadas para deslocar, intimidar e matar os indígenas Yanomami e seus defensores. O assassinato do jornalista britânico Don Phillips e do especialista indígena brasileiro Bruno Pereira em junho de 2022 sob as ordens de um comerciante de pescado que liderava um esquema de pesca ilegal na Amazônia seguiu o assassinato de muitos povos indígenas no território Yanomami.

A reserva Yanomami é o lar de cerca de 28.000 Yanomami. Aproximadamente 10 milhões de hectares abrigam 371 comunidades de difícil acesso na densa floresta tropical amazônica.

Segundo pesquisa do Instituto Socio Ambiental- ISA (ISA, 2022), o povo Yanomami descende de um grupo indígena que permaneceu relativamente isolado por pelo menos mil anos. Tal grupo anciente, teria ocupado a área das cabeceiras dos rios Orinoco e Parima (que atualmente se encontram em Roraima, Brasil). Sua relação com a floresta amazônica e a preservação ambiental está diretamente ligada à sua preocupação com a proteção da floresta como parte da relação dos Yanomami com a natureza.

A dizimação do povo Yanomami se intensificou desde 2017, durante o governo de Jair Bolsonaro. Após sua derrota nas eleições de 2022, o novo governo elegeu Sônia Guajajara como a Primeira Ministra dos Povos Indígenas do Brasil. Ela começou imediatamente a reconstruir os sistemas de proteção destruidos pelo presidente anterior.

Guajajara, membro do povo indígena Guajajara/Tentehar, e graduada em Literatura, Enfermagem e Educação Especial , tendo uma história de luta pelos direitos dos povos originais e pelo meio ambiente.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas em 2023 constitui um marco nas mudanças necessárias para aprimorar as relações do Judiciário até os Poderes Legislativo e Executivo com os Povos Indígenas. Aborda também a falta de representação dos povos indígenas, denunciada por muitos como elemento na base das fricções (Lisboa, 2022) (Folha, 2023) entre os sistemas de poder e os Povos Indígenas no Brasil.

O Ministério dos Povos Indígenas inclui advogados indígenas, assistentes sociais indígenas, antropólogos indígenas e muitos profissionais indígenas que estão há longa data ativamente envolvidos com suas causas. A falta de representação foi agora significativamente reduzida à medida que mais povos indígenas têm acesso à educação e à posições que lhes dão a tão necessária participação no debate sobre suas vidas.

Quatro mulheres indígenas foram eleitas para a Câmara dos Deputados em 2022: Sônia Guajajara, Célia Xakriabá, Silvia Waiãpi, e Juliana Cardoso. Elas assumiram o cargo de deputadas federais em 1º de fevereiro de 2023, no dia do início da nova Legislatura do Congresso Nacional.

Xakriabá tem mestrado em Desenvolvimento Sustentável e é pós-graduado em Antropologia. Célia é uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Antigüidade. Como membro da Secretaria de Educação de Minas Gerais, ela colaborou na abertura de escolas indígenas e quilombolas e na reabertura de escolas rurais em todo o estado.

A participação ativa dos povos indígenas nos Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e Acadêmico é crucial para que as mudanças aconteçam e certamente será constantemente desafiada.

Organizações governamentais, trabalhando com representantes do Ministro, relataram a morte de mais de quinhentas e setenta (570) crianças Yanomami nos últimos quatro anos após Jair Bolsonaro ter autorizado os mineiros a entrar em terras indígenas. Trinta meninas Yanomami menores de dezesseis anos estão grávidas de mineiros e outros invasores. (Business & Human Rights Centre, 2023).

Em 20 de janeiro de 2023, o governo federal declarou uma emergência de saúde pública na maior Reserva Indígena do Brasil. (Gozzi, 2023). Em 31 de janeiro de 2023, o Exército Brasileiro, a Marinha e a Força Aérea foram enviados para expulsar invasores de terra, proteger o povo Yanomami de seus ataques e resgatar milhares de Yanomami doentes e moribundos que foram objeto de violência contínua em suas terras. (Philips, 2023)

No país com a maior população católica, colonizado pelos portugueses, a Doutrina da Descoberta, suas manifestações e efeitos permanecem ignorados pela maioria.

O Papal Bull Dum Diversas (1452) foi emitido oito anos antes da chegada dos portugueses à costa do Brasil. Ela exigia que os povos não cristãos fossem invadidos, capturados, vencidos, subjugados e reduzidos à escravidão perpétua. Como seguimento, em 1455, a bula papal Romanus Pontifex foi emitida para proteger a ascendência do Rei de Portugal sobre novas terras descobertas, proibindo outros reis cristãos de infringir a prática de comércio e incursões de colonização do Rei de Portugal em regiões específicas. (Slaterry, 2005).

Mesmo como a tragédia Yanomami está nas notícias por toda parte, referências à existência da Doutrina, seu Impacto sobre os povos indígenas, o meio ambiente ou qualquer respeito a como ela molda a paisagem brasileira hoje são inexistentes.

Há, no entanto, uma obra de arte que merece atenção especial, pois conta a História da Doutrina no Brasil desde 1860.

O óleo sobre tela de 1860 do famoso artista Victor Meirelles, atualmente em exposição no Museu Nacional de Belas Artes em São Paulo, Brasil, conta um capítulo da Doutrina que está escondido à primeira vista.

Primeira missa no Brasil” de Victor Meirelles (1860) - Museu Nacional de Belas Artes, SP, Brasil.

By Victor Meirelles, Public Domain, commons.wikimedia.org/

O quadro “A Primeira Missa no Brasil” dá um relato visual preciso dos rituais da Doutrina, constituindo um ponto de partida bem documentado para esclarecer os princípios da Doutrina e sua poderosa presença desde os primeiros tempos coloniais, quando os portugueses chegaram ao litoral do que é hoje o Brasil.

Os estudos históricos não são isentos de ideologia. Enquanto expõem o passado, juntando pedaços e peças, eles não podem garantir que o que resta é o mais importante, a parte mais representativa do evento, concluiu Gottschalk (Gottschalk, 1979).

O mesmo se aplica quando os artistas usam os poderes da Arte para representar eventos históricos.

Começando pelo título do quadro, “A Primeira Missa no Brasil”, encontramos o incompleto, se não enganador, “pedaço de história” que exige atenção. 

Pintada por Victor Meirelles em Paris em 1859-1861, a peça de quase 14,9 polegadas quadradas (9,6 metros quadrados) tornou-se uma das telas mais conhecidas do Brasil. Sua presença é uma obrigação em qualquer publicação pedagógica.

Meirelles foi influenciada pela pintura de Horace Vernet “Primeira Missa em Kabylie”. Vernet foi testemunha ocular da missa católica celebrando a colonização francesa no norte da África, e sua legitimidade como pintor histórico inspirou o pintor brasileiro (Castro, 2009).

Em abril de 1500, a frota de Pedro Álvares Cabral desembarcou no que hoje é conhecido como Brasil. Na frota estava Pero Vaz de Caminha, um funcionário público português. Caminha descreveu oficialmente a cerimônia das duas missas católicas celebradas na nova terra.

Ele escreveu uma carta detalhada ao rei português, como se esperava de um cavaleiro em sua posição. A carta original está no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Ela é frequentemente mencionada nos livros de História do Brasil como testemunho do encontro benevolente dos portugueses com os habitantes da terra.

Devido ao sigilo com que o Reino de Portugal sempre envolveu relatos de suas descobertas, todo o conteúdo da carta de Caminha só foi tornado público no século XIX pelo Padre Manuel Aires de Casal em sua “Corografia Brasílica” em 1817. (Lencione, 2009)(de Casal, 1817). Somente então o contexto dos elementos da pintura pôde ser plenamente compreendido.

O quadro, disse Meirelles, seguiu a descrição contida na carta de Caminha.

Na realidade, a pintura dá uma imagem precisa do ritual de posse adotado pelos portugueses, com todas as etapas e componentes necessárias da Doutrina.

Os portugueses costumavam registrar suas descobertas de navegação plantando pilares de pedra alta encimados por uma pedra quadrada onde esculpiam o ano da expedição, o nome do líder da expedição e o nome do rei português. Em cima da pedra quadrada esculpida havia uma cruz. (Seed, 1995, p.132).

O ritual de posse e a oficialização das descobertas exigia também a documentação escrita e detalhada. A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei cumpriu tal requisito (Seed, 1995, p.180).

Como a pintura de Horace Vernet, a pintura de Meirelles documenta o ritual que oficializa o processo de colonização, de acordo com as regras descritas nas Bulas Papais que constituem a documentação da Doutrina de Descoberta. Assim como fez Vernet ao documentar o ritual de posse dos colonizadores franceses, Meirelles nomeou a cerimônia de posse “A Primeira Missa no Brasil”.

Ao observarmos o óleo sobre tela, vemos que a imagem se concentra à esquerda, onde , ao centro, um religioso realiza o ritual da Missa enquanto outros homens religiosos testemunham o evento. Estas figuras ocupam um nível mais alto, exceto por dois homens de armadura à esquerda. Alguns indígenas observam ou encontram proteção no topo de uma árvore à direita.

 Em um círculo distante, observando os eventos, são representados os povos indígenas com uma ampla gama de expressões: medo, raiva, espanto e incredulidade. Um bebê sendo amamentado, crianças assustadas, guerreiros e indígenas jovens e velhos povoam o lado esquerdo do quadro. Muitos indígenas estão distantes, alguns com braços estendidos em direção ao alto, alguns apontando para os navios no mar. Há uma sensação de caos ou espanto entre eles.

No fundo, a paisagem é feita de árvores com grandes copas, montanhas e um céu azul. O oceano e olhares na direção dos navios da frota portuguesa estão representados no canto direito.

Tudo constituo a representação visual detalhada do que foi descrito na carta de Caminha ao Rei.

Tão logo os rituais ou atos de posse definidos na documentação da Doutrina eram executados, a reivindicação legal de Portugal ficava imediatamente estabelecida. (Seed, 1995)

Consequentemente, todos os indígenas retratados na pintura de Meireles, habitantes daquela terra por mais de dois mil anos, tornaram-se imediatamente possessão portuguesa.

Após a descoberta de Cabral em 1500, o foco da Coroa Portuguesa em sua colônia foi a extração de recursos da terra, tais como pau-brasil, minerais preciosos e o que quer que pudesse ser encontrado.

Assinado entre Espanha e Portugal, o Tratado de Tordesilhas criou uma linha de imaginaria de demarcação, atribuindo o terreno ao leste da linha à Portugal e o terreno à esquerda da linha à Espanha.

Os efeitos do Tratado 1494 permanecem escondidos no sistema brasileiro de leis e tratados que negam os direitos e reforçam a exploração dos Yanomami, que veem suas terras repetidamente invadidas enquanto adultos e crianças são vítimas da mesma violência iniciada com a chegada dos portugueses.

Em 1530, logo após a “descoberta” e após a demarcação pelo Tratado de Tordesilhas, o território do que posteriormente ficou conhecido como Brasil, oi dividido em quatorze faixas de terra que foram então concedidas aos nobres de confiança do rei D. João III (1502-1557). Cada faixa de terra, denominada como “Capitania Hereditária”, era então repassada de pai para filho.

O legado das Capitanias Hereditárias está presente hoje através da concentração da propriedade da terra e da perpetuação do “coronelismo” brasileiro que mantém o poder em muitas áreas, uma vez que as mesmas famílias controlam ate mesmo Estados da Federação, criando dificuldades na demarcação de terras indígenas.

A pintura de Meirelles dá uma idéia da chegada dos portugueses à terra indígena. Bulas Papais emitidas pelo Papa Nicolau em 1452 e 1455 concederam aos portuguese o direito de tomar posse das terras e dos bens dos povos indígenas “para convertê-los a você, e seu uso, e seus sucessores, os Reis de Portugal” (Slattery, 2005).

A pintura de Meirelles está presente na maioria dos livros escolares brasileiros. Por outro lado, ausente na educação brasileira, a Doutrina da Descoberta é parte da História que ainda está “escondida em plena vista”.

O conhecimento dos fatos que constituem as origens dos atuais eventos catastróficos passa pela conscientização e informação sobre os princípios e métodos incluídos na Doutrina da Descoberta.

Os elementos racistas da Doutrina estão freqüentemente presentes em discurso de políticos e autoridades brasileiras.

Recentemente, enquanto defendia sua política de abertura de terras indígenas a exploração por mineração, madeireiros e criadores de gado, Jair Bolsonaro, presidente do Brasil até 1º de janeiro de 2023, declarou:

“O índio mudou; ele está evoluindo. Cada vez mais, o índio está se tornando um ser humano igual a nós”.

(Jair Bolsonaro, Presidencial ao vivo, 24 de janeiro de 2020)

Em 16 de agosto de 1998, o mesmo Jair Bolsonaro declarou, em um discurso na Câmara dos Deputados do Brasil:

“A cavalaria brasileira era muito incompetente. Competente, sim, era a cavalaria norte-americana que dizimou os índios no passado e hoje em dia não têm tais problemas em seu país”.

As pressões do agronegócio pela imposição de limitações na demarcação de terras indígenas, contou como o apoio presidencial de Jair Bolsonaro para aprovar o chamado ‘‘time Frame’’ (“Marco Temporal”, em português).

“Marco Temporal” é uma tese jurídica construída jurisprudencialmente na qual os princípios da Doutrina estão presentes em todas as suas nuances. O caso da terra conhecida como “Raposa Serra do Sol” foi discutido no Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil em 2009. Nele, a Suprema Corte decidiu que o artigo da Constituição que garante o gozo das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas brasileiros deveria ser interpretado incluindo apenas as terras em posse dos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira de 1988. Tal interpretação validaria os atos da ditadura militar brasileira quando os indígenas foram frequentemente assassinados e expulsos de suas terras.

À medida que a catástrofe dos Yanomami se desenrola, o Brasil ainda debate em duas frentes se é legal ou não determinar uma data, no caso 5 de outubro de 1988, mais de quatrocentos e oitenta anos depois da chegada dos portugueses, como sendo o limite inicial para a demarcação de terras indígenas. A discussão que ocorre em duas frentes jurídicas será votada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e há uma tentativa de aprovar o Projeto de Lei 490/2007. Tal Projeto de Lei 490/2007 inclui disposições extremamente problemáticas, que impedem que povos indígenas reinvidiquem terras como suas terras para expandir territórios já demarcados. O mesmo Projeto de Lei permite ao governo eliminar reservas indígenas que ameaçam a subsistência e a sobrevivência cultural dos povos indígenas. O Projeto de Lei 490/2007, se aprovado, incorpora termos que poderiam levar à remoção forçada dos povos indígenas de suas terras, como declarado pela Human Rights Watch. Os princípios evocados não por coincidência , são similares, se não iguais, aos incluídos na Doutrina da Descoberta, expandindo os poderes do governo e permitindo a invasão de terras indígenas incluindo ate mesmo arbitrariamente invadir e fazer contato mesmo os povos indígenas que vivem em isolamento voluntário.

Além disso, como as Bulas Papais, o projeto de lei dá ao governo o poder de explorar, por sua própria vontade, recursos energéticos, estabelecer bases militares e criar e expandir estradas em terras indígenas sem qualquer consulta aos povos indígenas.

Os princípios da Doutrina e suas manifestações, embora ocultos sob camadas de desinformação e omissão, estão, escondidos à vista de todos, embutidos em atos como o Projeto de Lei 490/2007.

Independentemente do discurso da Igreja Católica sobre a proteção do meio ambiente e o apelo à preservação da floresta, não há palavras sobre seu papel na promulgação dessas bulas papais, muito menos sobre a recusa em rejeitar a Doutrina, como ocorreu quando da visita do Papa Francisco ao Canadá em julho de 2022. Em meio às notícias devastadoras das condições do povo Yanomami, foram oferecidas modestas doações pela Igreja Católica, nenhuma referência foi feita a qualquer compensação a ser conferida ao povo original vitimado por suas Bulas Papais.

Em 2007, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP) foi ratificada por todos os seus participantes, exceto por quatro países: Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos. Atualmente, informações sobre a Doutrina são intensamente difundidas continuamente nesses países. Além disso, independentemente da ineficácia, o Senado canadense aprovou o Projeto de Lei C-15, procurando mesmo que apenas parcialmente, alinhar a legislação canadense com a UNDRIP. O projeto não implementa diretamente muitos dos artigos da declaração na legislação canadense, rescindindo apenas parcialmente os efeitos da Doutrina da Descoberta na legislação canadense. No caso brasileiro, signatário da UNDRIP 2007, o país permanece totalmente alheio aos danos causados por tal Doutrina.

Independentemente da ratificação pelo Brasil da UNDRIP 2007, ela não produziu efeitos práticos, e o governo brasileiro ainda precisa prestar contas de sua inação com relação ao assunto.

O trabalho de Robert Miller, “A Doutrina da Descoberta”: A Lei Internacional do Colonialismo”, (título original em Inglês: ‘The Doctrine of Discovery: The International Law of Colonialism.”), destaca a necessidade de reconhecer e abordar o legado do colonialismo para garantir a soberania indígena. 

Enquanto os livros escolares brasileiros incluem temas como ocupação, descoberta, colonização e povos indígenas, não há referência à Doutrina da Descoberta nas publicações brasileiras em português.

Em janeiro de 2023, o recém-eleito Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania do Brasil, jurista e intelectual, exigiu a presença da política federal na terra Yanomami para livrar a terra dos criminosos e proteger a vida de todos os que estão sob a arma dos mineradores e seus mandantes que operam o ciclo econômico de mineração iniciado pelos portugueses. Na terra invadida onde vivem 28.000 Yanomami, há 20.000 garimpeiros e por trás deles, uma rede poderosa e rica de empresas mineradoras além do crime organizado enriquecendo e se expandindo impunemente.

Crimes de ódio e genocídio nunca ocorrem como eventos isolados, mas resultam de incitamento ao ódio e à violência. O ex presidente de extrema direita de Jair Bolsonaro, mesmo derrotado nas urnas, tem ainda com representantes na presente legislatura, em campanha continua visando defender o garimpo e a exploração das terras indígenas em todo o Brasil, atingindo muitos outros grupos no Brasil. Mantêm um discurso desumanizador que utilizam como em uma constante preparação para aniquilar os povos indígenas sem uma reação da população.

Os povos indígenas no Brasil, entre eles os Yanomami, sobrevivem e sucumbem na luta que travam às beiras do genocídio.

Enquanto os povos Indígenas no Canada continuamente pedem ao Papa Catolico que repudie a Doutrina da Descoberta, os indígenas brasileiros permanecem alheios ao importnate papel da Doutrina em seu destino.

A invasão da terra dos Yanomami e a destruição deliberada de sua capacidade de se alimentarem, a contaminação das águas e a propagação de doenças são uma repetição das manifestações da Doutrina da Descoberta, um tópico totalmente fora de neste imenso país predominantemente católico.

Conclusão

A Doutrina da Descoberta tem tido uma longa e devastadora história no Brasil. Da escravidão, exploração e negação da soberania indígena ao genocídio dos Yanomami na Amazônia, este legado continua hoje com a luta contínua pelos direitos indígenas.

Os povos indígenas tradicionalmente têm desempenhado o papel de “guardiões” da Amazônia, um imenso território natural vital na luta contra a destruição do meio ambiente e contra a mudança climática. Representantes indígenas brasileiros, organizações Indígenas, juízes e advogados se unem a luta mas, uma peça do quebra-cabeça permanece ignorada: o reconhecimento de que A Doutrina da Descoberta tem causado imenso sofrimento e injustiça aos povos indígenas.

Para criar um futuro positivo e igualitário para todos os brasileiros, é essencial reconhecer a verdade da História do país e erradicar os vestígios da Doutrina do Descobrimento do Direito e da sociedade brasileira. É hora de derrubar o véu da ignorância que esconde as origens da violência contínua contra os povos indígenas – as Bulas Papais que constituem a Doutrina do Descobrimento.

 É passada a hora de fazer com que seja do conhecimento comum o fato de que por trás da opressão Yanomami e da apropriação das terras dos povos indígenas, estão os princípios racistas da Doutrina. É como se tais princípios ainda retenham poder sobre os primeiros habitantes da região, mesmo quando a Doutrina permanece escondida e aparentemente silenciada.

REFERÊNCIAS

SUGGESTED CITATION

Telma Alencar, "Descobrindo o Invisível: A Doutrina do Descobrimento, seu Impacto sobre os Povos Indígenas Brasileiros, sobre o meio ambiente e como ela continua a moldar a paisagem brasileira nos dias de hoje: Portugese," Doctrine of Discovery Project (3 April 2023), https://doctrineofdiscovery.org/blog/uncovering-invisible-pt/.

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